Notícias jornalísticas cotidianas expõem recorrentemente como atos e decisões dos nossos sistemas de justiça criminal e de segurança pública são seletivos tanto na concessão de privilégios, embaraçados enquanto direitos, quanto na distribuição de deveres e culpabilidades; mas que também são habitualmente apresentados como meros desvios pontuais por essas próprias instituições. A recorrência e a falta de estranhamento desses fatos explicitam o quanto é internalizada a nossa lógica da produção jurídica da desigualdade3, não exclusivamente no âmbito interno das instituições judiciais e policiais, mas também em cartórios, campos extrajudiciais de administração de conflitos, instâncias superiores e inferiores do Judiciário, etc., assim como há a sua reprodução do conhecimento universitário nas Faculdades de Direito e Academias de Polícia Militar e Civil que refletem as formas institucionais de produção e reprodução do saber jurídico e militar, seja nos quartéis e nas delegacias, seja nos tribunais.
A proposta desse dossiê foi reunir trabalhos que, por meio da pesquisa empírica, fossem capazes de estranhar e relativizar a forma engessada e idealizada da verdade produzida na dogmática jurídica e o abismo que existe entre ela e as
práticas nas instituições policiais e judiciárias. Tais trabalhos são focados em explicitar os processos de produção e reprodução das práticas institucionais, em um locus em que são socializados profissionalmente os operadores da justiça criminal e da segurança pública, assim como para perceber a natureza dos conflitos levados pela sociedade às agências destinadas a administrar tais conflitos.
A empiria, portanto, permite constatar a importância de interferências no trato de conflitos pelo judiciário e pelas polícias que ainda permanecem opacas ao olhar do Direito, uma vez que esses campos ainda não produziram teorias explicativas sobre suas práticas nem métodos de pesquisas próprios do seu campo.
Tais questões podem decorrer das próprias práticas institucionais desses campos, também ensinada implicitamente em suas academias, de determinadas interpretações concedidas às leis em casos específicos ou da descaracterização de conflitos não previstos na legislação, que deixa sem tratamento adequado situações que prosseguem abrigando conflitos potenciais. Se isto ocorre, como se admite aqui, a função de administração de conflitos não estaria cumprindo o papel a ela oficialmente atribuído de interferir positiva, pedagógica e explicitamente na manutenção da estabilidade e segurança social.
Esse dossiê vai ao encontro de pesquisas sobre as práticas burocráticas em nosso sistema jurídico-policial em perspectiva comprada por contrastes que têm estado sob foco no Brasil desde a década de 1980, embora em passos lentos. Boa parte desses trabalhos empíricos demonstra como tais práticas se (re)produzem de maneira informal e quase invisível, à margem da lei e das doutrinas jurídicas, mas compartilhando valores corporativos que orientam práticas institucionais locais (Amorim, 2017; Azevedo, 2001; Baptista, 2013; Bernardina, 2019; Brito, 2017; Cardoso de Oliveira, 2011; Corrêa, 2012; Duarte & Iorio Filho, 2015; Ferreira, 2005; Figueira, 2008; Filgueiras, 2015; Filpo, 2016; Geraldo, 2019; Lima, 2017; Kant de Lima, 2019; Mendes, 2012; Mouzinho, 2019; Nuñez, 2018; Policarpo, 2020; Ribeiro, 1995; Seta, 2015; Vargas, 2000; Vidal, 2013).
Partindo dessas questões e reflexões surgiu a motivação da organização e produção do presente dossiê, a ser publicado em um periódico do Direito que prioriza trabalhos empíricos e em diálogo com os métodos das Ciências Sociais.